O Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, uma importante dotação institucional em matéria de defesa da concorrência e de regulação setorial para a cadeia produtiva do Gás Liquefeito do Petróleo (GLP). O arcabouço regulatório que deriva daí, ancorado nas atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e Agência Nacional do Petróleo (ANP), e o próprio exercício da regulação tem se mostrado bastante robusto, funcional e capaz de garantir a segurança do abastecimento em todo território nacional.
No entanto, em julho de 2025, a ANP aprovou um relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) que apresenta a possibilidade de enchimento de vasilhames de 13 kg (P13) de forma remota e fracionada. A proposição de mudança regulatória prevê que o consumidor final possa assumir a responsabilidade de movimentação do produto. Ou seja: o consumidor poderia levar o botijão até uma central de distribuição ou ponto de revenda para enchimento. Caso aprovada, parece evidente que os custos de fiscalização também tendem a crescer. Assim, não só o enchimento dos vasilhames, mas também a tarefa de fiscalização ficaria fracionada, ensejando custos muito mais elevados num contexto de recursos orçamentários contingenciados e escassos do órgão regulador.
A AIR propõe ainda que distribuidoras possam usar e encher botijões com a marca de uma outra empresa gravada no vasilhame, o que tornaria secundário o papel da marca, e desincentivaria o investimento na aquisição e requalificação de botijões. A marca é um ativo estratégico e resultante da busca legítima de construção de vantagens competitivas. Além disso, no caso do GLP, a marca das distribuidoras gravada em alto-relevo em cada botijão se traduz num dispositivo de interesse público, pois fornece proteção aos consumidores e garante a rastreabilidade com relação a eventuais problemas de qualidade do produto.
Tais propostas foram pautadas pela noção equivocada dos efeitos esperados de incremento do número de competidores sobre os preços e sem uma identificação precisa dos problemas que poderiam ser efetivamente solucionados. Num mercado de um bem homogêneo, dada a importância de cumprir a especificação do produto determinada pela ANP, e no qual há um nível baixo de switch costs (o consumidor insatisfeito pode eleger outra marca e trocar de fornecedor), é natural que a fidelidade à marca seja alta. Isto é decorrente dos investimentos e inovações organizacionais das empresas distribuidoras para a garantia da reputação de suas respectivas marcas. Logo, a fidelidade à marca é uma resultante do padrão de concorrência vigente.
A estrutura de mercado de distribuição de GLP configura, de fato, um ambiente de concorrência oligopolista decorrente das barreiras à entrada, as quais são inerentes às especificidades setoriais como a escala mínima eficiente, as condições operacionais de engarrafamento e a logística de movimentação do produto. De fato, tais elementos de custos constituem uma das principais fontes de produtividade e desempenho das empresas distribuidoras.
Em síntese, o grau de concentração característico do mercado de distribuição de GLP se deve à importância de um conjunto de recursos estratégicos e investimentos realizados ao longo dos anos. Isto permite a construção de vantagens competitivas, tais como: fidelidade à marca da empresa de distribuição; economias de escala; estrutura da logística de recebimento e movimentação do produto, incluindo, entre outros, a localização das instalações de armazenamento, e a frota de caminhões disponíveis em uma região específica.
No mercado de distribuição de combustíveis líquidos como gasolina, etanol e diesel, por exemplo, o número de distribuidoras é significativamente maior do que no mercado de GLP. Porém, isto não significa o estabelecimento de um padrão de concorrência justa como foi evidenciado recentemente na Operação Carbono Oculto, com a detecção de fraudes fiscais e adulteração do produto.
As novas resoluções, caso porventura venham a ser aprovadas pela diretoria colegiada da ANP, irão resultar em incremento dos custos que serão incorridos pelos agentes econômicos, bem como os custos de fiscalização. Além disso, resoluções desta natureza abrem um enorme flanco para a multiplicação de desvios de conduta e ilícitos, ampliando os riscos de fraudes e sonegação fiscal, e desincentivando novos investimentos.
Em um momento de grandes dificuldades orçamentárias das agências reguladoras, as medidas propostas podem, de fato, desorganizar e fracionar um mercado que, como dito anteriormente, é funcional e garante, com rapidez e qualidade, o abastecimento do produto em todo território nacional.
Autores:
HELDER QUEIROZ, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, coordenador do Grupo de Economia da Energia, doutor pela Universidade de Grenoble/França e mestre em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ e MARCELO COLOMER, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Grupo Economia da Energia UFRJ
Fonte: Correio Braziliense
