O barato que sai caro

Fonte: Estadão

A Petrobrás teve um prejuízo acumulado com subsídios ao gás liquefeito de petróleo (GLP), o “gás de cozinha”, de aproximadamente R$ 30 bilhões (a preços correntes anuais) no período de 2003 a 2015, segundo cálculo do economista José Tavares, diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes) e sócio da Ecostrat, consultoria de comércio exterior e estudos setoriais.

Tavares nota que esse subsídio é em boa parte apropriado por famílias não pobres e de classe média. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, de 2002-2003 mostra que o item “gás doméstico” correspondia a 3% das despesas mensais de famílias com rendimentos de até dois salários mínimos. Na POF de 2008-2009, essa proporção havia caído para 2%. Para famílias com renda acima de seis salários mínimos, caía para menos de 1% da despesa mensal.

Em outras palavras, o gasto já não é extremamente significativo para as famílias pobres, e torna-se quase irrelevante para as não pobres, que ainda assim também se beneficiam do subsídio.

Tavares, que há muito tempo pesquisa esse tema, nota que o subsídio ao consumo popular do GLP começou na década de 70 no governo militar, quando a prioridade era acabar com o uso do fogão a lenha. O GLP na época era todo importado e, segundo o economista, os militares montaram um sistema de subsídio “soviético”, centralizado no Conselho Nacional de Petróleo (CNP), e repleto de controles. Mesmo ineficiente, o sistema garantia que o preço do gás de cozinha fosse estável e barato, imune às flutuações do barril de petróleo, o que naturalmente ajudou na difusão. Já no governo Sarney o GLP havia chegado a todos os municípios brasileiros.

O governo Collor acabou com o CNP e os controles no setor, e Tavares classifica a década de 90 como “meio caótica” em relação ao GLP. Com a instalação da Agência Nacional de Petróleo (ANP) e do marco regulatório implantado pelo seu então diretor-geral Sebastião do Rego Barros, recentemente falecido, a normalidade voltou na década seguinte.

Ainda assim, Tavares é crítico do sistema criado pela então ministra da Energia Dilma Rousseff em 2003, em que a Petrobrás vende com subsídio a parcela de GLP que as distribuidoras teoricamente revendem como botijões de 13 kg (P-13, o típico gás de cozinha). A proporção é determinada por um complexo sistema de cotas, baseado no volume de botijões P-13 comercializado pelas distribuidoras nos seis meses anteriores. O que não estiver na cota de P-13, como bisnagas de 45 quilos ou outras formas de comercialização voltadas a empresas, não tem o grande subsídio do gás de cozinha (ainda que o preço também seja favorável, segundo o consultor).

De 2003 a agosto de 2015, o preço por botijão cobrado pela Petrobrás das distribuidoras ficou congelado em cerca de R$ 11,50. De lá para cá, permaneceu num patamar de R$ 13. O cálculo do subsídio até 2015 feito por Tavares levou em conta o IPCA no período, as vendas de botijão P-13 (média de 380 milhões por ano) e o nível de paridade do produto importado. Em termos reais, o preço do botijão de 2015 era inferior à metade do preço de 2003.

Tavares ressalva que, desde que os militares iniciaram a política de difusão do gás de cozinha na década de 70, este se tornou um item sensível politicamente para todos os governos. Fernando Henrique chegou inclusive a criar o vale-gás, incorporado ao Bolsa-Família por Lula.

“Eu sempre aceitei a tese do impacto muito alto no orçamento familiar, até verificar pela POF que ele era pequeno”, diz o economista. Ele acrescenta que o P-13 chega ao consumidor por algo na faixa de R$ 50 a R$ 70, dependendo da região do País, e tipicamente dura um mês ou até quarenta dias. “Com um salário mínimo de R$ 937, vê-se que não é um gasto entre os mais pesados do orçamento”, ele pondera.

Ainda assim, para famílias que ganham menos ou muito menos que o mínimo, o impacto pode ser significativo. Quanto a isso, Tavares diz que “na minha opinião pessoal, seria melhor usar o dinheiro desse subsídio para dar aos pobres saneamento, saúde, educação e transporte e deixar ele se virar com o gás de cozinha – ainda assim, como se trata de um tema politicamente sensível, acho que a melhor solução seria dar um subsídio direto às famílias de baixa renda, na linha do vale-gás”.

Ele vê também alguns impactos adicionais perversos, para além da questão social. Em artigo que será publicado amanhã no site da Ecostrat, Tavares escreve que a diferenciação dos preços do GLP motiva a proibição há cinco década do seu uso em várias atividades, que atualmente incluem a grande maioria dos motores, as saunas, as caldeiras e o aquecimento de piscinas. Ele cita também usos que “embora permitidos, não são explorados adequadamente nas condições atuais”: aquecimento de ambientes em avicultura, estufas de plantas e frutas, secagem de grãos, queimas de pragas, beneficiamento de algodão e produção de vidro, papel, asfalto e de incineradores de lixo.

Na conclusão, o economista considera que “a segunda distorção grave inerente ao atual regime de preços é a de fortalecer o monopólio da Petrobrás na infraestrutura de importação e de transporte de cabotagem (ligada ao GLP)”. Ele teme que o mercado do produto possa sofrer um estrangulamento de médio prazo, já que a estratégia atual da Petrobrás é de se concentrar nos negócios principais de exploração, produção e refino. (fernando.dantas@estadao.com)

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 3/5/17, quarta-feira.