Por Daniel Braga
O diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Décio Oddone, convidou a sociedade a participar da Tomada Pública de Contribuições – TPC para coletar dados e questionar sobre a conveniência de criar-se uma norma para estabelecer uma periodicidade mínima para o repasse do reajuste do preço dos combustíveis pela Petrobras. A TPC é um instrumento que tem o objetivo de tornar público determinado assunto e colher sugestões da sociedade e dos demais entes públicos a respeito de temas de grande relevância, em respeito ao princípio democrático.
O aviso da TPC expõe as justificativas para a inciativa, na forma de considerandos. Tais justificativas são: a concentração de mercado hoje existente no setor de refino no Brasil; o fato de que a existência dessa concentração de mercado exige um tratamento específico e excepcional, enquanto persistente essa situação de monopólio de fato; que as constantes alterações do preço do petróleo e da taxa de câmbio, quando repassadas diariamente ao consumidor final, geram incerteza, insegurança e instabilidade para o mercado e os consumidores, aptas a ensejar eventual regulação; que, embora a liberdade do estabelecimento de preço seja uma premissa respeitada pela ANP, decorrente da livre iniciativa, a ausência de efetiva concorrência no mercado de refino gera desequilíbrio no mercado passível de intervenção; que estabelecer um período mínimo para repasse do reajuste não significa interferência na formação do preço, que continua sendo livre; que uma intervenção regulatória pode ser necessária enquanto existente o monopólio de fato gerador de falha de mercado, ou, pelo menos, até que haja alteração no atual quadro fático ou no modelo tributário atualmente existente, que reequilibre o mercado e proteja os consumidores.
Fundamenta-se a possível intervenção na competência constitucional da ANP, prevista no art. 177, § 2o, III da Constituição Federal, para regulação do monopólio da União; bem assim nas competências legais da ANP, principalmente aquela prevista no art. 8º, I da Lei 9478/97, para regulação do mercado e proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço e oferta dos produtos; e, por fim, no fato de que, embora abertas à livre iniciativa, as atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis são consideradas de utilidade pública, conforme art. 1º, §1º da Lei 9847/99.
O atual governo tirou as indevidas pressões políticas e a Petrobras, até onde se nota, adotou a politica de preços que precisava para atingir o objetivo de qualquer empresa, que é a maximização dos resultados, diante das pressões que uma petroleira endividada sofre com o barril do petróleo ao preço que estava. Pedro Parente, CEO da empresas de 1º de junho de 2016 a 1º de junho de 2018, criou uma política de variação do preço dos combustíveis que acompanha a do dólar e a o do petróleo no mercado internacional. Provavelmente a mesma política será mantida pelo novo CEO da companhia, Ivan Monteiro. Com efeito, houve uma mudança abrupta de política de preços. Por uma conjuntura internacional de alta dos preços do barril, bem como do dólar internamente, os impactos foram sentidos na elevação interna dos preços dos derivados. A sociedade obviamente não entende isto e reagiu, não gostou. Mas, se a conjuntura fosse inversa, ou seja, se os preços tivessem sofrido uma pressão e caído, todos estariam a aplaudir a política de preços da Petrobras. É assim que funciona num mercado livre.
Ainda que os preços dos derivados de petróleo tenham sido de uma certa forma “controlados” durante a maior parte dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), especialmente no período em que Dilma Rousseff esteve no comando do Poder Executivo, este controle não se deu por intervenção regulatória. Foi feito através da influência política (intervenção “branca”), passível de ser exercida pela condição em que o Estado, como sócio majoritário da Petrobras, tem poder para nomeação do seu CEO, e, assim, definir a sua política de preços. Registre-se que são situações diversas, mesmo que somente sob o ponto de vista jurídico.
Assim, a iniciativa de se adotar o procedimento da TPC em antecedência a qualquer medida regulatória é, além de inteligente, altamente louvável sob o aspecto da legitimidade democrática, o que, de per se, é digno de registro. É preciso, contudo, antes de mais nada, avaliar se uma intervenção no sentido de estatuir-se uma periodicidade para os repasses dos combustíveis derivados de petróleo encontra o necessário amparo legal, diante do arcabouço jurídico atualmente vigente.
Neste específico mister, o que se verifica é que a Lei do Petróleo já tratou do assunto, nos artigos 69 a 73. O art. 69, por exemplo, dispôs que, durante o período de transição, que se estenderia, no máximo, até o dia 31 de dezembro de 2001, os reajustes e revisões de preços dos derivados básicos de petróleo e gás natural, praticados pelas unidades produtoras ou de processamento, seriam efetuados segundo diretrizes e parâmetros específicos estabelecidos, em ato conjunto, pelos Ministros de Estado da Fazenda e de Minas e Energia. Note-se que esse período já fora estendido pela Lei nº 9.990, 2000, que alterou a Lei do Petróleo, já que na redação original esse prazo terminaria em 7 de agosto de 2000. O art. 70, a seu turno, estatuiu que durante o período de transição (até 31.12.2001), a ANP estabeleceria critérios para as importações de petróleo, de seus derivados básicos e de gás natural, os quais deveriam ser compatíveis com os critérios de desregulamentação de preços, previstos no art. 69. O art. 72 dispôs que, durante o prazo de cinco anos, contados a partir da data de publicação da Lei, ou seja, até 7 de agosto de 2002, a União asseguraria, por intermédio da ANP, às refinarias em funcionamento no país, excluídas do monopólio da União, nos termos do art. 45 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, condições operacionais e econômicas, com base nos critérios em vigor, aplicados à atividade de refino. A contrapartida foi de que essas refinarias se obrigaram a submeter à ANP plano de investimentos na modernização tecnológica e na expansão da produtividade de seus respectivos parques de refino, com vistas ao aumento da produção e à consequente redução dos subsídios a elas concedidos (art. 72, II). Caberia assim à ANP avaliar, periodicamente, o grau de competitividade das refinarias, a realização dos respectivos planos de investimentos e a consequente redução dos subsídios relativos a cada uma delas.
Extrai-se disso tudo que, nos termos da Lei nº 9.478/97, a despeito das justificativas expostas no bojo do Convite da TPC, qualquer tipo de intervenção relativa ao estabelecimento de diretrizes e parâmetros específicos dos preços dos derivados de petróleo teve data certa para terminar. Deflui disso que, ultrapassados, como de fato estão, os prazos de transição estatuídos pela Lei do Petróleo, não subsiste autorização legislativa para intervenção regulatória neste sentido. Ainda que o art. 1º, III, da Lei nº 9.478/97 disponha que as políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão, dentre outros, o objetivo de proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos, competência materializada pela ANP, a forma pela qual essa proteção deve se dar não inclui a intervenção, qualquer que seja ela, acerca do controle de preços dos derivados de petróleo ou quaisquer outros, salvo expressa previsão legal, que não é o caso.
Ressalte-se que, por mais que os impactos sobre os preços internos dos combustíveis estejam sendo sentidos pela sociedade, é fato que a atual política tem melhores condições de atração de investimentos do que a anterior, notadamente para o setor de refino, onde há grande carência de expansão do parque de produção.
Mas, essa atratividade pode ser mitigada, se da TPC em exame resultar alguma resolução a disciplinar o assunto, criando uma norma de periodicidade para esses repasses. Na realidade, há ainda um cenário pior, que não é objeto direto deste texto, no qual os potenciais investidores podem até ser afastados completamente, no caso de se aprovar uma legislação com um teor interventivo mais pesado, como é o caso do projeto de lei do Senado 270/18, que prevê que a política de preços da Petrobras para gasolina, diesel e GLP (Gás liquefeito de petróleo) definirá que os preços de realização da Petrobras serão fixados periodicamente e terão como base as cotações médias do mercado internacional, os custos internos de produção e a meta de redução de volatilidade.
É preciso, porquanto, definir com clareza se o que se objetiva realmente é expandir a capacidade de refino, o que, como a história já demonstrou, não deverá ocorrer se o país depender exclusivamente de investimento da Petrobras, ou se o Estado vai continuar a intervir nos preços dos combustíveis na tentativa de criar uma situação artificial, para conter os ânimos da sociedade, decorrente dos impactos inflacionários da sua variação em função da paridade internacional.
Queremos acreditar que este tipo de regulação ou legislação não deverá vir a ser aprovada. As medidas governamentais ora postas em pauta partem de premissas (requisitos para regulação) corretas — o monopólio de fato no setor de refino (falha de mercado) é causa da variação brusca nos preços, por ausência de competição efetiva — mas chegam a um produto regulatório equivocado, que é o controle de preços. Ora, se a falha de mercado, decorre justamente da intervenção exacerbada do Estado no domínio econômico, a ponto de constituir um monopólio de fato através de uma empresa em que o Estado tem participação majoritária, como se poderia presumir que a melhor forma de correção adviria de mais intervenção estatal, no controle da periodicidade do aumento dos preços pelo monopolista? A única coisa que esse tipo de intervenção poderia produzir, por consequência do afastamento do interesse dos potenciais investidores, seria mais concentração no setor de refino, ou pior, deterioração ainda maior nos nossos parques, por conta da incorreta remuneração da atividade. A causa não reside nos preços, mas no monopólio de fato, e, uma das formas mais eficientes para acabar-se com esse monopólio é justamente com a liberdade de preços, capaz de atrair competição, que tenderá a pressionar os preços, fazendo-os cair. Em outras palavras, atuar no controle de preços em um setor em que há monopólio de fato como decorrência dos preços artificializados, é o mesmo que tentar apagar um incêndio jogando gasolina.
A conclusão a que se chega, portanto, é que o requisito para intervenção regulatória, ou seja, a falha de mercado, que é a causa para uma variação abrupta dos preços internos, que gera incerteza, insegurança e instabilidade para o mercado e os consumidores, está plenamente identificada: existe um monopólio de fato no setor de refino de petróleo. Esta é, pois, a causa imediata. Mas, antes da causa imediata, há uma mediata, que é a origem dessa falha, qual seja, os motivos que fizeram com que o setor de refino se constituísse em um monopólio de fato. Esta é na realidade a verdadeira origem do problema, e, porquanto, o verdadeiro ponto onde a regulação deve atuar se tiver intenção real de tratá-lo. Agir no controle de preços, seja por que forma for, só tenderá a agravar o próprio problema, ou, quiçá, gerar outros ainda imprevistos. Será preciso estudar todas as causas mediatas da falha de mercado para encontrar as melhores soluções de cunho regulatório. Certamente a solução demandará ação enérgica da ANP em temas como livre acesso a infraestrutura de importação e transporte de derivados, imposição de venda de ativos de refino se for o caso (isto deve ser feito em conjunto com o CADE), ação junto aos entes tributários para realinhar os vetores da anacrônica tributação, ação enérgica do CADE em casos de prática eventualmente anticompetitivas, como dumping por exemplo, pelo monopolista, dentre outras. Portanto, o que precisa ser feito é uma Análise dos Impactos Regulatórios, capaz de mapear detalhadamente a falha, suas causas e potenciais soluções. Muitos dirão que isto não é fácil, mas, como diria um capitão de indústria que conheço e se ler este texto saberá que falo dele: os problemas fáceis nós preferimos deixar para os outros.
DANIEL BRAGA FREDERICO – Advogado especialista em assuntos de compliance, jurídicos e regulatórios especialmente para os setores de infraestrutura, petróleo, gás natural e energia e sócio de EnergyRE Inteligência Regulatória.